O sublime temporal da hiper produtividade
Por Gabriel S. Philipson


Achtung – palavra em alemão que pode indicar um perigo, solicitar Atenção! e também cuidado – foi usada por Kant para caracterizar o sublime, diante do qual devemos agir com respeito, com Achtung. O respeito ocorre devido a uma alternância entre atração e repulsa, conhecida pelo nome de abalo – e até mesmo de Abgrund, abismo. Ligada às experiências em cavernas e abismos ao redor de todo o mundo, bem como à sua qualificação de mergulho única para mulheres e muito rara no Brasil, em situações limites para o ser humano, seria possível propor que a obra artística como um todo de Susanne Schumacher Schirato seja caracterizada pelo abalo e pela atenção e respeito com o sublime.

Ocorre que os paralelos entre Schirato e Kant são ainda maiores. Enquanto nos grafites sobre lâminas de PVC de Schirato (Sem título, 2011-2018) o que parece estar em jogo é menos a representação da natureza morta das cavernas e mais a racionalidade (auto)determinada dos números, das listas e das contas que emergem como uma necessidade da experiência-limite do mergulho, o iluminista Kant operava também aqui, na sua “Analítica do Sublime”, uma espécie de Revolução Copernicana: se concede que possamos chamar de sublime coisas da natureza, isso se deve apenas ao fato de que esse sublime aponta para nós, humanos, que sublime mesmo, na verdade, nós é que somos. Pode-se dizer que Kant realiza uma espécie de sublimação do sublime, na qual este se mostra como um desafio – transponível – para a liberdade humana de se autodeterminar. Ao desafiar a liberdade humana, ou seja, a capacidade de autodeterminação do ser humano, abalando-a por sua grandeza por excelência, diante da qual nos sentimos submetidos e dominados pela natureza, o sublime revela ao ser humano, contudo, que ele tem uma capacidade infinita de pensar e de conceituar esse mesmo sublime (vale lembrar que em alemão, o termo “conceito” tem a ver com pegar e agarrar com as mãos, begreifen). Os esboços de pedaços de caverna de Schirato não se parecem com essa tentativa, racional-estética, é verdade, de agarrar o sublime? Os grafites sobre PVC de Schirato são troféus da dominação e do controle racionais do tempo - são rastros de atos de obstinação, domínio, superação e superioridade da racionalidade humana.

2º12’15” (2019) é uma obra composta de 120 telas. Cada tela foi feita em aproximadamente 1 minuto. Simula a pressão do tempo no mergulho, no qual se tem 120 minutos para voltar à superfície, dados pela quantidade de ar carregada nos cilindros. Seu gesto encena, portanto, não o sublime das profundezas abismais das cavernas, mas a própria experiência da pressão e da limitação corporal, da luta contra o tempo, relacionando o tempo da respiração com o tempo da criação da obra. As telas constituem um signo do limite e da finitude humana. E são performativas, num duplo sentido. De um lado, cada obra são as inspirações e expirações do corpo transpostas ou traduzidas em tinta a óleo sobre o branco da tela. Suas cores a óleo procuram ressaltar as nuances do escuro das cavernas, cada pincelada na horizontal performa uma bolha de ar na água. E faz isso de maneira sublimada, ou seja, lírica, não só pelo que poderia se chamar, com Benjamin, de aura da arte, mas principalmente pela mediação da pintura a óleo clássica. De outro lado, é também um resultado da luta contra a limitação do tempo. Kant não tratou do sublime temporal: é Schirato quem procura, segundo o gosto da sociedade da performatividade e da positividade contemporânea, a autodeterminação e autodestinação do ser humano desafiadas pelo limite temporal e corpóreo da respiração maquinal subaquática.

Como resultado desse desafio transposto então para as esferas auráticas da arte, é possível que as obras de Susanne Schirato possam apontar para uma espécie de retorno do real traumático do ser humano contemporâneo hiperprodutivo, hiperperformático. Como o operário de Os tempos modernos de Charles Chaplin saía parafusando parafusos imaginários na era do capitalismo industrial, nós nos deparamos nesta exposição com o tema da hiperprodutividade da atualidade, ao se reproduzir na Arte com A maiúsculo o sublime de nossa época, que é a própria produtividade da sociedade do desempenho. Diferentemente do operário dos Tempos Modernos, os hiperfuncionários de hoje já vivem no interior de uma acoplagem de máquina e humano. Sonham, afinal, as máquinas-humanos? Ao procurar reencontrar o éden ou o idílico pela arte, na pintura, o ser humano contemporâneo acaba apenas reproduzindo as estruturas de pressão a que passa a se autossubmeter de livre vontade, como reprodução de uma produtividade que, deslocada e deslocalizada na esfera artística, pode ser que irrompa em um real estranhamente subterrâneo mesmo ao abismo sublime (sem passar, contudo, pelo abjeto).

O trabalho de Schirato nos apresenta, porém, pouco mais do que cacos e fragmentos do sublime temporal, parafusos ou vestígios de gestos desterritorializados do corpo hipercontrolado e acoplado a máquinas de respiração para o mergulho nas profundezas de cavernas. Podem ser vistas desse modo as telas de 120 minutos (2018), que não representam conchas recolhidas das cavernas. Elas não são um cachimbo, quer dizer, elas não são conchas, mas ficções que reproduzem de modo algo lírico (ou seja, por tinta a óleo) o hipercontrole do corpo em um tempo dilatado, é verdade, mas que não deixa de ser finito e impositivo. O fato de, ainda assim, serem pinturas a óleo de conchas indica apenas a sensação constantemente presente de nostalgia do mundo pré-moderno por parte do ciborgue em que nos transformamos sem nunca deixarmos de ter sido.

No todo de sua exposição, Schirato apresenta-nos, assim, como que uma só e grande obra, um único tema explorado em variações de contraponto – diferentes imposições e racionalidades paralelas e contrapostas sempre a diferentes formas de lirismo – de ritmo ou respiração, de plataforma, em variações harmônicas, que desenvolvem um mesmo material “real”. Nesse sentido, o vídeo 64Kg em 1ATM (2018), ao trazer o tema para o ambiente em que nos sentimos em casa – o próprio quarto de dormir –, talvez seja a obra em que mais pode haver salvação ou fuga, quer dizer, em que mais há possibilidade de aflorar o real submerso.

A exceção a esse todo é Mão de cabo (2018). Mão de cabo é um nó que, quanto mais se puxa, mais prende, ou seja, quanto mais desafiado pelas forças sublimes das águas, mais resiste e insiste em sua própria sublimidade, em sua própria capacidade de agarrar-se. Colhida à deriva em uma praia do litoral, é um fóssil-handmade, uma deusa-esfinge pagã, que restaura e anuncia o respeito e o perigo da natureza, sugerindo que, por vezes, ela pode vencer – e não é isso o que anunciam as trombetas apocalípticas dos que professam a doutrina do Antropoceno?





Quem tem medo do escuro
Por Carolina Paz


Apavorante a ideia de mergulhar na água e não ter mais um espaço de ar para o qual se possa ascender para recuperar o fôlego. Atreve-se a essa proeza quem domina técnicas específicas e confia nos equipamentos que tem para explorar mundos submersos, misteriosos, profundos e perigosos à vida humana.

Para quê se submeter a esse risco? Para dar luz ao desconhecido, abstrair-se de si e prestar atenção à descoberta, à surpresa, às cores, às texturas rochosas, à escuridão… É preciso confiar no parceiro de mergulho, estabelecer uma comunicação por gestos, desenhos e textos. É tudo sinalização, fio condutor e lanternas. Não se pode dar margem a qualquer relativização, encantamento, dúvida, improviso nas decisões para consigo e para com o outro. A deriva é morte certa.

No mergulho em cavernas, a mais avançada prática entre todas do gênero, é alto o risco de se perder e nunca mais voltar. E é justamente no meio desse sufoco que Susanne Schumacher Schirato encontra o ponto de partida para nos oferecer uma experiência: a instalação A H2O está + quente embaixo.

Um cubo de 3 x 3 metros, branco, de lycra rigidamente esticada, posicionado quase no centro da sala do Coletivo 2e1, separa o "mundo de fora" de um "outro mundo interior". Entra-se nele pela frente, por um recorte no pano equivalente a uma porta. O ambiente tem iluminação difusa (a cobertura de tecido filtra a luz da sala e há lâmpadas, nos quatro cantos laterais, posicionadas por dentro da estrutura). O chão é de cascalho, corpo desequilibra ao entrar e a pisada vacila.

Há dezessete anos, Susanne mergulha em cavernas, já esteve nas mais importantes no Brasil e no mundo. Para algumas delas, diz que não voltará. “Não vale a pena. O risco é enorme! Tem uma caverna por exemplo, chamada Cow Springs, que eu não consigo voltar mais porque ela exige muito autocontrole e concentração. São sete restrições e ângulos diferentes, o que significa que são grandes negociações com o lugar encostando os cilindros no teto e o peito no chão."

Para a artista-exploradora interessa a experiência do corpo em flutuação, às vezes espremido por estreitas passagens, às vezes minúsculo, flutuando num imenso salão envolto de espeleotemas (nome dado às formações rochosas de interiores de cavernas). Tudo é profunda escuridão. Pode-se pensar em um útero. Mas enquanto nesse se respira sem ajuda de equipamentos, a água é ar – o humano é anfíbio e o líquido amniótico alimenta de oxigênio as células do feto – na caverna não há uma condição natural para o corpo. Enquanto o útero é o puro primitivo, a caverna é um lugar alheio, misterioso, interditado pela natureza que, por insistência, o ser humano quer descobrir, atravessar e iluminar. Na caverna o risco de vida é consciente.

Já distante da caverna, no campo da arte, sem ameaça iminente de morte, onde a flutuação é simbólica, Susanne oferece fragmentos que coletou em seus mergulhos. Uma coleção de vestígios trazidos de um mundo muito distante e praticamente inacessível, a não ser para poucos e corajosos insistentes. Desenhos e pedrinhas são índices-souvernirs deslocados para esta instalação. Agora, são estas peças os corpos em suspensão.

As páginas de seus cadernos, os quais leva consigo nas explorações, estão
combinadas em quarenta e oito pares, pendurados por fios de nylon, lembrando um livro aberto. Nelas, há desenhos quase abstratos, anotações rápidas de texturas, paredes, rochas, ambientes, assim como também palavras-chave, mensagens código trocadas com seu companheiro enquanto ambos estão submersos. O duplo também aparece nas marcas que o grafite deixa sobre a página oposta ao desenho, à nota. A lembrança do contato está por toda parte nesta instalação.

Pedaços calcários, relíquias íntimas que Susanne traz no bolso, são um duplo
fetiche. Aqui o contato é do desejo da mergulhadora com o desejo do espectador. A primeira deseja possuir um pedaço concreto da experiência vivida, o segundo deseja o contato com essa experiência que só pode ser por ele acessada em parte, pela imagem que a artista articula e por sua própria imaginação sobre esse mundo misterioso. Um "quase" contato direto com o referente. E é esse quase que mantém a sensação de suspensão e de desejo de contato durante toda a experiência que a obra proporciona.

Esse desejo vence o medo do escuro.




Estratégias de todo dia
Por Tarcisio Almeida


Encanta-me poder fazer aqui um relato e mergulhar em considerações acerca de um assunto tão delicado como é a experiência do cotidiano. Afinal, o dia a dia é o estado de todo tempo. De uma plasticidade incomum manter um exercício constante de relação com aquilo que nos atravessa não é uma prática simples. Como sustentar o corpo disponível e poroso para as forças cotidianas que muitas vezes visam nos desmoronar? Estar à altura desta experiência é, em seu limite máximo, estar aberto a um jogo constante de testemunhas e atestados para possibilidades, modos de existência, subjetividades, vidas por vir (e uma outra infinidade de espectros) que passam a existir em diferentes graus de complexidade quando somos atravessados e assim forçados a esse tipo de encantamento que estamos chamando de cotidiano. Os desafios só aumentam. Se por um lado temos o corpo nesse eterno enfrentamento de forças para sustentar sua porosidade, por outro temos tudo aquilo que passa a existir em maior ou menor grau de possibilidades quando esse tipo de encontro pode acontecer. Sendo assim, viver a experiência do cotidiano é tornar comum a aptidão em testemunhar, dar a ver, debruçar-se sobre aquilo que muitas vezes ocupa apenas o lugar de silêncio. Vale reforçar todo o aspecto ético-político envolvido nesse tipo de postura diante da vida. Há uma ética porque estes encontros não se reportam a um conjunto de ordens ou regras tomadas como um valor em sim, mas, sim afirmadas a partir desse choque constante de diferenças e de tudo aquilo que nasce desse tipo de processo. Há uma política porque sustentar um cotidiano repleto de forças e formas vivas configura-se como uma luta contra tudo aquilo que pretende tornar inoperante nossa capacidade sensível, vulnerável e também ativa diante da própria experiência do vivo. Poderíamos dizer também que estes aspectos do cotidiano em nada se aproximam de um método (entendido aqui como um conjunto de normas e regras estabelecidas a priori da experiência) mas sim de um jogo de arranjos, negociações, enfrentamentos, embates, quebras, desmontes, construções e contrações que fazem jorrar a todo tempo uma nova possibilidade de criação. Sugiro por fim nos atentarmos sobre a dimensão estética desse movimento. A experiência estética no cotidiano é a capacidade de testemunhar/materializar os territórios que estão por nascer e que diariamente constroem o vivo. Assim, linguagens, formas, procedimentos, cores, recursos... todo esse vocabulário ganha novos significados uma vez que seus usos entram em jogo para dar contorno àquilo que advém desse processo. Logo, não há significados anteriores que não possam ser reconfigurados, redefinidos e moldados para o que se apresenta: o dia a dia.

Quando é assim que se faz o trabalho do cotidiano, e também o da arte, ele se dá de uma forma concebida e praticada através da capacidade de se permitir ser perfurado por esse tipo de marca, por estados vividos no corpo com o encontro dessas outras infinitas possibilidades de vida. Nesse contexto, por mais pessoal e singular que sua expressão possa ser pensada, este cotidiano e essa “arte” é sempre plural, coletiva e de responsabilidade de todos que se comprometem a manter ativa essa prática criadora. É nesse tipo de mobilidade que nos arrancamos daquilo que esperamos ser nós e nos tornamos um tipo de alteridade garantindo uma capacidade de escuta e mobilização para outros contornos da vida. Criar a partir dessa entrega rigorosa a um cotidiano é instaurar uma perspectiva de mundo, mesmo que em esboços inacabados. É sugerir novas possibilidades de mundo e por isso novas possibilidades de existência. Problematizando à sua maneira, Davi Lapoujade na passagem Da Instauração nos sugere: A partir de então, instaurar é como se tornar o advogado dessas existências [...], seu porta-existência. Carregamos sua existência como elas carregam a nossa. Compartilhamos com ela a mesma causa, contanto que possamos ouvir a natureza das suas reinvindicações, como se exigissem ser amplificadas, aumentadas, enfim, tornadas mais reais. Ouvir essas reinvindicações, ver nessas existências aquilo que elas têm de inacabado, é forçosamente tomar o partido delas. [...] A arte e a filosofia têm isso em comum, que uma e outra visam colocar seres cuja existência se legitima por si mesma, através de uma espécie de demonstração luminosa de um direito à existência que se afirma e se confirma pelo brilho objetivo, pela extrema realidade de ser instaurado1...
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Seguindo essa linha invisível, apresentamos aqui um conjunto de trabalhos que se dedicam a testemunhar esse tipo de encontro. Seja através de deslocamentos, ficções, travessias, coletas, apropriações, repetições, invenção de técnicas, gestos mínimos, do próprio corpo, das cosmologias, oralidades, memórias e distopias o Estúdios Galeria Califórnia se reúne para compartilhar essas diversas maneiras de cotidianos. Andrea Brazil, Carla Cunioci, Dan de Carvalho, Maria do Carmo Verdi, Karen de Picciotto, Martín Lanezán, Matheus Chiaratti, Pierre Lauwers, Susanne Schirato, Thais Graciotti e Vitor Sugimoto pretendem aqui dar a ver suas estratégias de todo dia.

LAPOUJADE, Davi. As Existências Mínimas. N-1 Edições: São Paulo, 2017.